O que é o Electro?
Para ouvir enquanto lê…
O termo Electro é, acima de tudo, uma expressão que abrange uma gama variada de estilismos: Electro Funk, Electro Rap, Pure Electro, Electro Dance (Freestyle), entre outros, que são suas subcategorias, seus subgêneros, suas vertentes. Curiosamente, o Electro é um dos estilos musicais mais incompreendidos que permeiam os universos da Black Music e da Música Eletrônica e, ao mesmo tempo, um dos estilos mais influentes da música contemporânea.
No início da década de 1980, em Nova Iorque, o nível de inovação musical foi surpreendente. A diversidade das músicas lançadas durante este período era incrível, pois ninguém imaginava o que estaria por vir, afinal, tudo era “possível”. O Electro é um perfeito alongamento da sonoridade que artistas da música eletrônica – Kraftwerk, Yellow Magic Orchestra e Gary Numan, por exemplo – e alguns pilares da Black Music – Herbie Hancock, Stevie Wonder e George Clinton – buscavam nos anos 70 através da linguagem dos sintetizadores, dos experimentos sonoros e, obviamente, através do uso inovador dos instrumentos eletrônicos.
A fusão do Electro com o Hip-Hop ganhou corpo em 1982, por intermédio do clássico “Planet Rock”, de Afrika Bambaataa & Soulsonic Force, o marco inaugural do estilo nos Estados Unidos. Porém, antes do clássico “Planet Rock” vir à tona (em 1982), músicas como “You’re The One For Me”, do legendário D Train, “Thanks To You”, do grupo americano Sinnamon, entre outras, já desenhavam uma estética Proto-Electro na seara da Black Music, incorporando elementos dessa linhagem sonora quando o termo Electro ainda não era usual. Embora o Electro tenha adquirido uma nova identidade a partir do cruzamento com o Hip-Hop ocorrido na América, os europeus tiveram sua “Onda Electro” composta por experimentalistas da Italo Disco, entusiastas do Synth-pop e por estetas da música eletrônica como Art of Noise.
Mas, no entanto, o disco que impulsionou o desenvolvimento desse novo ritmo foi “The Man-Machine”, concebido pelo Kraftwerk em 1978, tendo a música de abertura do álbum, “The Robots”, como faixa-chave. Mais tarde, o japonês Ryuichi Sakamoto (membro do Yellow Magic Orchestra) lança a música “Riot In Lagos” em 1980 e, no ano seguinte, os alemães do Kraftwerk lançam o álbum “Computer World”, que contém a faixa “Numbers”, com sua batida minimalista e atemporal; esses discos englobam as matrizes desta linguagem musical. Contudo, singles como “Electrophonic Phunk”, do Shock (1981), já esboçaram sinais dos rumos que seriam tomados pela música negra nos anos seguintes; o grupo Elektrik Funk, aliás, já trazia o conceito do novo ritmo estampado no próprio nome.
Para compreender o estilo, seu desenvolvimento e suas particularidades, temos que levar em conta o contexto histórico – já que o electro passou por muitas ramificações ao longo do tempo – entre o início e o final da década de 1980, quando o estilo deu vazão para o surgimento de cenas complementares, fases distintas e momentos peculiares: primeiro, a cena inicial de 1982-1983 abrigou um número maior de produções relacionadas ao Electro puro e ao Electro Funk e, segundo, o ciclo musical de 1984-1985 ficou marcado pelo auge do Electro Rap. Aos poucos as cenas se misturaram de tal forma que, no final das contas, confirma-se a impressão de que um disco do estilo pode conter faixas que percorrem ambas vertentes.
Old School Rap
Em princípio, não é fácil compreender um estilo, um gênero musical, devido às diversas concepções criadas nos últimos quarenta anos. Segundo o escritor Steve Neale, “estilos são fenômenos transitórios e históricos que, de alguma forma, sofrem transformações periódicas e podem ser dominados pela repetição.” Os ciclos musicais, assim como os ciclos cinematográficos, estão localizados num período específico, de duração limitada. O Electro Rap, por exemplo, pode ser definido como um ciclo musical que deu um passo à frente na estética do “Old School Rap”- um ciclo que ocorreu na esfera musical do Hip-Hop entre o final da década de 1970 e início da década de 1980 (1979-82), especialmente em Nova Iorque.
De 1979 a 1982, o Rap era feito por bandas de estúdio, tendo como pano de fundo algumas versões Rap de músicas de sucesso que percorriam a fronteira de outros estilos musicais. Essa fórmula ganhou corpo no começo do Rap gravado em vinil com “Rappers Delight”, do The Sugarhill Gang, que usava elementos do hit “Good Times”, do grupo Chic.
De fato, “Rappers Delight” pode ter tido forte apelo comercial, mas, no fundo, é uma música atemporal. Críticas e preferências musicais à parte, uma coisa é certa: embora o primeiro registro fonográfico da música Rap tenha surgido alguns meses antes com “King Tim III”, do Fatback, “Rappers Delight” chegou a mais lugares, cumprindo o papel de apresentar para o mundo uma forma de arte até então desconhecida para muitas pessoas. Aos poucos, outros artistas foram seguindo à risca essa fórmula encabeçada pelo The Sugarhill Gang e, assim, surgem músicas como “Genius Rap”, de Dr. Jekyll & Mr. Hyde e “Jazzy Sensation”, de Afrika Bambaataa & The Jazzy 5. Essas faixas são, respectivamente, versões Rap das músicas “Genius of Love”, do Tom Tom Club e “Funky Sensation”, da Gwen McCrae.
No Brasil, o grande arranjador e esteta da MPB, Lincoln Olivetti, bebeu na fonte inesgotável de Nile Rodgers para criar a versão brasileira do hit do The Sugarhill Gang. Ele contou com a ajuda de uma figura onipresente no cenário cultural brasileiro: Luiz Carlos Miele. Miele compôs o Rap “Melô do Tagarela” em parceira com o humorista Arnaud Rodrigues, um ano após o hit do Rap estadunidense ganhar forma. Bom, se o Hip-Hop nasceu no Bronx, a indústria fonográfica do Hip-Hop nasce em Englewood, Nova Jersey, impulsionada por esse single do The Sugarhill Gang.
À Procura da Batida Perfeita
Na Era do Soul/Funk, a bateria acústica de Hamilton Bohannon, Bernard Purdie, Clyde Stubblefield, Bill “Fatback” Curtis ou John “Jabo” Starks, com seus notáveis padrões rítmicos, serviu como uma vestimenta musical para as block parties – as famosas festas que aconteciam em edifícios residenciais abandonados ou em parques no Sul do Bronx, em Nova Iorque, no começo do Hip-Hop.
Àquela altura, o precursor do Hip-Hop nos Estados Unidos, DJ Kool Herc, formatou o som das festas baseado no trecho que as pessoas mais vibravam, isto é, o “Break“ – a parte onde a batida ganhava uma forma mais pura; a prática (inédita) de Herc de ampliar o break a partir de dois discos iguais originou o Break-Beat, o fundamento musical para B-Boys e B-Girls. Mais tarde, essa técnica seria redesenhada nos anos 1980 através do advento do sample. No entanto, com a popularização da bateria eletrônica 808 em meados de 1982 – uma bateria eletrônica analógica com memória de microprocessador – o Hip-Hop encontra uma nova maneira de levar adiante a premissa do “Faça você mesmo”, que, como sabemos, foi a força motriz por trás do movimento Punk nos anos anteriores.
Os padrões de bateria do Electro acabaram virando emulações de breakbeats, mas com uma diferença: o electro é mais mecânico enquanto os breaks reproduzem, principalmente, trechos feitos por bateristas humanos. Assim, a bateria eletrônica da Roland, juntamente com outras baterias eletrônicas digitais como Linn Drum e Oberheim DMX, surge no mercado como uma alternativa que estimulava a criatividade de jovens, que todavia, não tinham ao seu dispor a possibilidade de frequentar anos de estudo em uma escola de música. Além da facilidade de criar padrões rítmicos, beats, a bateria eletrônica proporciona múltiplas possibilidades de timbres.
Embora a Roland-TR 808 tenha uma relação muito estreita com a história do Electro, a bateria eletrônica Oberheim DMX também foi usada em algumas composições notáveis do estilo. O clássico “Change The Beat”, de Fab 5 Freddy, foi gravado através desta bateria eletrônica. É neste som, inclusive, que o vocoder do Electro foi imortalizado em milhares de versões sampleadas que emulam a frase “Ahhhh, this stuff is really fresh”, um famigerado bordão no uso da técnica do scratch. Por outro lado, a bateria eletrônica DMX teve mais impacto nas produções de Nova Iorque: o hit “Sucker MC’s”(‘83), do Run-DMC, é caracterizado pelo som marcante da DMX.
Rito de Passagem do Old School Rap ao Electro Rap
A partir do momento que o hip-hop começa a ter como foco a música do grupo alemão Kraftwerk lá pelos idos de 1982, o som começa a mudar de Disco Rap feito por bandas ao vivo para o Electro Rap. É de se notar, também, que essa estética do Old School Rap poderia ser construída através do advento de loops que emulavam, majoritariamente, produções da dupla conhecida pela alcunha de P&P (Peter Brown & Patrick Adams). A diferença na forma de produção trouxe à tona uma singularidade para o novo estilo: no lugar de bandas de estúdio que replicavam grooves populares da Disco Music e do Funk, o Electro Rap era calcado na produção eletrônica. De certa forma, ele pode ser caracterizado por batidas rápidas, uptempo, que são programadas através de baterias eletrônicas como Roland TR 808, Oberheim DMX, ou, em alguns casos, por Linn Drum.
Coloque nessa equação a força expressiva do Rap que, nas típicas produções de Electro dos anos 80, deu um novo frescor para a métrica inicialmente concebida por MC’s pioneiros como Grandmaster Caz (Cold Crush Brothers) e Kool Moe Dee (Treacherous Three); adicione os vocoders (vocais robóticos) que colocavam um recheio especial para as rimas dos emcees que, nesta fase do Hip-Hop pré-sampler, eram estruturadas em melodias criadas através de sintetizadores analógicos (e digitais) como o Yamaha DX7, Roland Juno/Jupiter, Prophet-5, Oberheim e Matrix, e temos, assim, o seu DNA musical.
“O sintetizador Yamaha DX7 tornou-se coqueluche na época em que foi lançado. Os timbres que o DX7 possui são fantásticos, sendo que a grande maioria deles somente pode ser conseguida com precisão e peso através da síntese FM, que resulta, em outras palavras, em harmônicos completamente novos e, por conseguinte, em novos timbres. Quanto mais modeladores são utilizados, mais complexo o som vai ficando. Os timbres gerados por essa síntese são mais “eletrônicos”. É fácil perceber quando alguém toca um piano elétrico gerado por um DX7, pois o timbre é muito característico.” (Sintetizadores à Brasileira – Francisco Edson de Souza Pereira - 2003)
Electro Rap
Surgido à margem da indústria fonográfica, o Electro Rap é fruto de um período em que o Hip-Hop (ainda) vivia o seu anonimato e permanecia como um fenômeno underground. É neste cenário, intenso em criatividade e com poucos recursos, que os grupos começam a gravar, em formato físico, a sua própria música; esses discos foram feitos, na maioria das vezes, de forma independente.
Enquanto selos notórios como Sugar Hill e Enjoy Records ganharam visibilidade na era do Old School Rap ( ou Disco Rap), selos como Tommy Boy, CCL/Cutting Records, Streetwise, Profile e Emergency tiveram um papel crucial no processo de difusão dos discos produzidos entre 1982-86, em Nova Iorque. Paralelamente, selos emblemáticos como Macola Records e Music Specialists, juntamente com outros mais obscuros como Saturn Records, Rappers Rap Records, 4-Sight Records e Konduko/Tashamba, foram importantes para a consolidação da estética Electro em cidades como Los Angeles e Miami. Captain Rock, Newcleus, Fantasy Three, Mantronix, Whodini, Arabian Prince, World Class Wreckin’ Cru e Double Duce podem surgir como nomes estranhos nas prateleiras de Rap das lojas de discos de sua cidade. Em comum, há o fato deste material ser fundamental para a compreensão de como era feito o Hip-Hop nessa fase eletrônica.
Na esteira de sucessos encabeçados por Afrika Bambaataa & Soulsonic Force (Planet Rock ‘82) e Newcleus (Jam on It ‘83), os guetos norte-americanos se transformam no habitat natural de uma nova geração de artistas que percorriam as vias do underground em suas respectivas cidades. Eles eram movidos, essencialmente, por uma característica em comum: o sonho de gravar um disco que pudesse reverberar nas ruas com a batida perfeita. A propósito, uma parcela expressiva destes artistas conseguiu gravar apenas singles que, em muitos casos, sintetizam as suas próprias trajetórias musicais. Vale ressaltar que alguns artistas que ganharam visibilidade no Gangsta Rap - Doctor Dre, Ice-T e Kid Frost, por exemplo - começaram a trilhar o seu caminho no Hip-Hop através de singles de Electro.
Doctor Dre é uma figura à parte que dispensa apresentações. O homem por trás de rappers famosos do calibre de Snoop Dogg, Eminem e 50 Cent será eternamente lembrado como um dos membros do lendário grupo de Gangsta Rap, N.W.A. Mas, no entanto, poucos se lembram que ele contribuiu para o desenvolvimento do Electro na Costa Oeste com seu antigo grupo, World Class Wreckin’ Cru. E, por fim, poucos se dão conta que, embora o Dr. Dre tenha ajudado a formatar a estética do estilo Gangsta, o seu nome aparece na produção de alguns discos notáveis que ganharam forma nos anos iniciais do Electro; o disco “Young Girls”, de um grupo obscuro intitulado T.K.O., é um deles.
Ice-T, diga-se de passagem, não ficou atrás. Ele inicia sua trajetória no Hip-Hop através de um single de Electro Rap, “The Coldest Rap”. Entre 1983-85 ele participou de filmes e documentários que difundiram o Hip-Hop da Costa Oeste e, entre eles, Breaking & Entering’ (‘83), Breakin’(‘84) e Breakin’ 2 - Electric Boogaloo (‘85). Esses vídeos, juntamente com Beat Street (‘84), Delivery Boys (‘84), Electro Rock (‘85) e Knights Of The City (‘86), além de divulgarem o Hip-Hop para o mundo, eram repletos de Electro em suas trilhas sonoras. A versão ao vivo de “Reckless”, interpretada por Ice-T no filme Breakin’, pode ser vista como uma peça-chave de aparição midiática do Electro e da Cultura Hip-Hop naquele momento – da mesma forma que clipes como “Buffalo Gals”, de Malcolm Mclaren.
Em muitos países, aliás, o estilo chegou por intermédio desses vídeos, na “Era do Breakdance” e da indumentária B-Boy/B-Girl com seus agasalhos esportivos de marcas icônicas como Adidas, Puma, Nike, Sergio Tacchini, Ellesse, Fila e Kappa. Tudo isso, enfim, comprova que o Electro e suas diversas facetas foram interligados, desde meados da década de 1980, com as chamadas “danças urbanas”, tendo como vitrine os estilos B-Boying, Popping and Locking, simplificados pela mídia e pelos meios de comunicação em massa através da expressão “Breakdance”.
Naquele momento, com os avanços da tecnologia de produção na Dance Music, produtores e engenheiros de áudio começam a se aventurar cada vez mais in-studio, explorando a variedade de sons gerados por seus “novos brinquedos”, isto é, baterias eletrônicas e sintetizadores. O Electro é fruto desta guinada à música eletrônica que a Black Music sofreu no início dos anos 80. O estilo promoveu um diálogo entre o Rap fomentado nas bordas de Nova Iorque com a música eletrônica que ganhava forma no momento. A autenticidade desta arte não surge da pureza, mas de uma mistura: Rap com Electro.
Electro Funk
Em contrapartida, o Electro Funk é um estilo que funde elementos de dois universos, ou seja, o cruzamento do Funk com o Electro. Musicalmente, ele pode ser reconhecido por suas linhas de baixo sequenciadas por riffs sintéticos, com efeitos sonoros criados pelos sintetizadores, enfatizando a ficção científica e o futurismo através de texturas e timbres peculiares. De uma maneira geral, o Funk da década de 1980, além de seguir por outras diretrizes e dialogar com as inovações tecnológicas da “década do neon”, acabou trazendo no campo de suas aspirações musicais uma nova premissa: as bandas não precisam mais gastar fortunas com gravações no estúdio, pois o som era feito com o auxílio de máquinas, computadores e outros aparatos eletrônicos, num momento em que as big bands foram desfeitas e o produtor se torna o personagem central, “one-man show”.
De fato, a música estava mudando: o viés orgânico da música afro-americana do começo dos anos 70 foi sendo substituído por uma roupagem futurista, eletrônica e moderna. O padrinho do Funk, James Brown, via com certo estranhamento os novos rumos que vinham sendo tomados pela Black Music. Na verdade, ele se sentia despreparado para um novo mercado que tinha como parâmetro de vendas discos feitos com base nas contagens de batidas por minuto. Além disso, a popularização de novas técnicas de estúdio, que permitiam que as faixas fossem divididas e gravadas em camadas, era vista com ressalvas por ele. O alicerce do seu Funk estava no ritmo sincopado da bateria acústica, no baixo predominante e na seção rítmica dos metais. Contudo, a sua fórmula começou a sofrer alterações quando, em meados de 1977, a banda Parliament teve a ideia de usar o sintetizador Moog para fazer a linha de baixo na faixa “Flash Light”. Mais tarde, as bandas de Funk foram sendo reduzidas ou, ainda melhor, naipe de metais começaram a ser substituídos por teclados. Aos poucos, o visionário George Clinton começa a ver a concepção musical do seu clã de artistas - batizados de P-Funk (Parliament-Funkadelic, Plainfield Funk ou Psychedelic Funk) – sendo substituída por máquinas e sintetizadores.
O Electro Funk estava na vanguarda de muitas músicas baseadas em sintetizadores. “Aquele espaço, aquele ritmo, aquele Funk”, estava sendo aperfeiçoado: efeitos sonoros presentes em obras de grandes arranjadores como Quincy Jones ganharam novas texturas com os teclados, que, nestas novas faixas, ocuparam trechos de orquestrações anteriormente preenchidos por flautas. A sonoridade dos sintetizadores, cujas atmosferas figuram como protagonistas, é uma característica em comum em faixas que permeiam diferentes vertentes do Electro. Aliás, os sintetizadores usados nas produções de Electro Funk e Electro Rap são basicamente os mesmos. Entretanto, apesar dos artistas terem usado o mesmo material, os discos podem soar bem diferentes: tudo depende do estilo de programação das baterias eletrônicas e, claro, dos efeitos utilizados através dos sintetizadores.
A tecnologia abriu espaço para um novo campo de possibilidades sonoras, permitindo uma conexão musical entre a Música Eletrônica europeia e a Black Music estadunidense. Um dos reflexos das novas incursões no manto do Funk oitentista aparece no trabalho dos bateristas, que, na época, começaram a testar experimentos combinando sons extraídos de bateria acústica com timbres de bateria eletrônica. Isso trouxe uma nova concepção para a Dance Music, um novo estímulo para a música. Mas, apesar do Funk já ter sua trajetória eletrônica iniciada na década de 1970 com pilares como George Clinton, a sonoridade orgânica ainda era predominante na era das calças boca-de-sino, dos saltos plataforma e dos penteados afro.
Como nada muda tão depressa, essa alteração estilística ganharia novo fôlego somente nos idos da década de 1980. O rito de passagem de 1981 para 1982, por sinal, pode ser visto como um capítulo à parte na linha evolutiva da Black Music, pois, a partir deste momento, o som se tornou mais eletrônico, em plena efervescência do P-Funk e da cena de Electro Funk da Costa Oeste, num período em que a música de Rick James, Bar-Kays, One Way, Fatback e Zapp estava invadindo as pistas de patinação; isso ocorreu numa atmosfera em que os avanços tecnológicos já exerciam grande influência no cotidiano das pessoas. No campo da música popular, temos o encontro de duas matrizes: uma, que refletia a partir do P-Funk de George Clinton ; e outra, movida pelo Funk robótico do Zapp. Os novos grooves feitos nesse período começam a exprimir, em uma linguagem musical inovadora, que o diálogo entre música e tecnologia seria o combustível da Black Music nos anos seguintes. Em suma, uma nova ordem musical, eletrônica, substituiu à antiga. A expressão “Electro Funk” refletiu justamente tal mudança.
Electro Funk: Terminologia Confusa
Essa terminologia confusa faz parte do imaginário popular desde o nascimento do estilo: portanto, não é estranho que as pessoas confundam Electro Funk e Electro Rap até os dias de hoje, embora os termos pareçam autoexplicativos e sirvam como uma base de sustentação para muitos argumentos. De fato, o termo Electro Funk faz mais sentido se for usado para exemplificar o tipo de estética desenvolvida por grupos e artistas como Midnight Star, Reggie Griffin e Radiance, entre outros, que ganhou forma, especialmente, entre 1982 e 1985. Nos discos destas bandas, apesar de existir um som híbrido de Funk com música eletrônica, o Funk é, essencialmente, o seu elemento principal.
Em 1982, Afrika Bambaataa batizou sua música como “Electro Funk”. Relida à distância de quase 40 anos, a célebre narrativa do padrinho do Hip-Hop parece um eco de um passado distante como, ainda, uma expressão um pouco confusa. Por exemplo, se ouvirmos o hit “Planet Rock” com atenção, é nítido que a ênfase está no Rap encorpado pela música eletrônica do Kraftwerk, muito bem estilizada pela dupla de produtores Arthur Baker & John Robie; o Funk, neste caso, é um elemento secundário, limitado à programação sincopada de bateria eletrônica. Portanto, poderíamos classificar esse som como Electro Rap ou Electro Hip-Hop ao invés de Electro-Funk, não é mesmo?
No entanto, o termo Electro Funk tem sua validade se levarmos em conta que, no momento em que Afrika Bambaataa criou essa expressão, ele poderia estar se referindo ao contexto da época em que o Funk (ou, no caso, o Hip-Hop ou outro estilo de Black Music) estava sendo vestido por uma roupagem eletrônica. Olhando por esse prisma, Electro Funk pode ser uma expressão dúbia, capaz de abarcar outros significados. No fundo, existe uma linha tênue entre o que o estilo realmente é e o que o termo realmente significa.
Electro no Reino Unido
Afrika Bambaataa cunhou o termo “Electro Funk” em 1982 para descrever sua música e, no ano seguinte, a Street Sounds foi a primeira compilação a usar o termo “Electro” para descrever um subgênero do Hip-Hop. Em meados de 1983, a gravadora Street Sounds ganhou corpo a partir da necessidade de preencher uma lacuna musical do Hip-Hop na Europa. O seu conceito se alicerçava sobre a ideia de disponibilizar para o público do Reino Unido e, consequentemente, da Europa, o novo material que surgia nas ruas dos EUA. De certo modo, esse material chegou até o público europeu através de um rótulo: Electro. Era este, por sinal, o nome escolhido para a antológica compilação, Street Sounds Electro.
Em 1984, com a popularidade dos clássicos imortalizados pela coletânea, era comum ver um rádio boombox pulsando numa esquina de Londres, Nottingham ou Manchester emulando faixas presentes em algum dos volumes da famigerada compilação. Na Europa, muitas pessoas conheceram o Hip-Hop e seus elementos por intermédio de videoclipes como “Buffalo Gals” e, também, por intermédio dos discos da Street Sounds, que, diga-se de passagem, reuniam faixas exclusivas de discos norte-americanos ainda inéditos no Reino Unido.
Um estilo importado ganhava raízes nas calçadas da Inglaterra, unindo diferentes etnias, conscientizando os jovens para que deixassem de lado suas desavenças e prestassem atenção no que ocorria no Bronx, do outro lado do Atlântico, naquele momento. De imediato, as pessoas passaram a assimilar a ideia de que Electro era uma abreviação de Electro Funk.
Electro no Brasil
No Brasil, o público teve o primeiro contato com a Cultura Hip-Hop no biênio 1983-84, quando videoclipes de Michael Jackson, Malcolm Mclaren, Chic, Gap Band e Lionel Richie foram exibidos na tevê aberta e filmes como Beat Street e Breakin’ lotavam sessões de cinemas na Avenida Ipiranga, em São Paulo. Com a chegada do home video no país e, sobretudo, com a formação de um mercado de VHS no território brasileiro, essas fitas começam a cruzar as fronteiras culturais e linguísticas que dividem os países, apresentando aspectos do Hip-Hop que, até então, eram desconhecidos por muitos fora do espaço geográfico do Bronx, em Nova Iorque. Nos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros de 1984, as notícias sobre uma nova dança - elástica e quebradiça - vão ganhando cada vez mais espaço.
O entretenimento é, em sua essência, um dos pilares de qualquer indústria cultural. E, com uma demanda sedenta por novas experiências crescendo no país, o mercado preencheu rapidamente esse espaço em branco: em resposta à essa demanda, a indústria fonográfica brasileira criou a sua própria interpretação sobre o “novo ritmo” norte-americano presente nas trilhas sonoras destes filmes, que, no Brasil, se popularizou como “Break”, isto é, uma forma abreviada de “Break Dance”. O Break emplacou e, com o novo estilo de dança, surgiram novos adeptos em diversas cidades brasileiras: São Paulo, Rio, Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, Porto Alegre, Curitiba, Belém, Goiânia, entre outras.
No país do futebol e do carnaval, selos como RGE e Young merecem destaque. O primeiro apresentou o material oriundo de duas crews de dançarinos: Electric Boogies e Black Juniors; o segundo colaborou com dois lançamentos femininos: o grupo Buffalo Girls - em alusão à música “Buffalo Gals”, de Malcolm Mclaren; além de uma versão pouco difundida do clássico “World Famous”, de World Famous Supreme Team, feita por uma misteriosa cantora com o pseudônimo artístico de Sasha. Outros artistas estabelecidos na esfera do Soul/Funk brasileiro também deixaram à sua contribuição: Tony Bizarro produziu o grupo Villa Box, pela CBS; e Gerson King Combo trouxe à luz o seu Electro-Funk, “De Madureira à Central”. Ainda há, inclusive, espaço para alguns títulos mais obscuros, que permaneceram no anonimato ao longo de mais de três décadas; o disco “Robô Dançante”, do Grupo Cogumelo, pode ser incluído nessa lista.
Todavia, apesar de ter ocorrido um pequeno resgate desta estética, ao longo da década de 1990, por intermédio de alguns representantes da cena de Rap de Brasília como DJ Raffa, DJ Jamaika, Álibi e Kabala, os poucos discos que representam o estilo no Brasil foram produzidos, quase em sua totalidade, no meio da década de 1980 - e, salvo algumas exceções, como os discos do Truke e do Gerson King Combo, lançados no Rio, respectivamente, no biênio 1984-1985 - esse material foi produzido predominantemente em São Paulo.
Olhando para trás com um certo distanciamento histórico, é possível perceber que ambos (discos) feitos no Brasil na “Era do Break” têm uma fisionomia musical parecida, semelhante à estética de grande parte do material lançado pela Celluloid Records, de Nova Iorque; e isso se deve à utilização de um mesmo equipamento durante a programação das composições: a bateria eletrônica DX-Oberheim.
Mais Definições sobre Electro
Se, por um lado, o Electro Rap é reconhecido como uma fusão entre música eletrônica e Hip-Hop e, por outro lado, o Electro Funk funde elementos de Funk e Electro, o “Pure Electro”, como o nome sugere, é a representação do estilo em estado puro, geralmente encontrado em faixas instrumentais ou, em alguns casos, com a presença de vocoders. Faixas como “Al-Naafiysh” do Hashim, “Computer Pop” do Maggotron ou “122 BPM” do grupo britânico Jive Rhythm Trax são alguns exemplos desta vertente pura do Electro.
Já o Electro Dance pode ser visto como uma fusão de Electro e R&B. No começo, o estilo foi chamado de “Latin Hip-Hop” e, mais tarde, ficou conhecido como Freestyle. Ele surgiu nas comunidades hispânicas de Nova Iorque no início dos anos 1980. É facilmente identificado por por seus vocais melódicos, por suas batidas sincopadas presentes em outras vertentes do Electro e, principalmente, por suas famosas edições artesanais (editadas com lâminas de barbear), capitaneadas por editores latinos como Albert Cabrera & Tony Moran (Latin Rascals), Carlos Berrios, Chep Nunez, Omar Santana, Jellybean, dentre outros.
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Electro: da Desaparição ao Renascimento
Seguindo a máxima de que “um estilo musical é um fenômeno transitório em constante processo de mutação”, o Electro começou a perder visibilidade na cena musical a partir de 1986-87, justamente quando o imaginário do Hip-Hop estadunidense foi fortemente seduzido pela geração Def Jam, impulsionada por grupos como Public Enemy e Beastie Boys. Excepcionalmente, na Califórnia e em alguns outros estados dos Estados Unidos, o estilo teve uma vida mais longa: é possível encontrar discos do estilo que foram produzidos até meados de 1988-89 em cidades como Las Vegas, Oakland, Houston, Detroit, West Palm Beach, entre outras.
Porém, apesar do estilo ter esboçado algum fôlego ao final da década de 1980, o mesmo foi sendo descartado, abrindo espaço para novas cenas musicais. Às portas do novo milênio, nos anos de silêncio que seguiram, o Electro começa a ecoar em outras vertentes musicais, exercendo sua influência em uma gama variada de estilos: Freestyle, Miami Bass, Techno, Funk Carioca, Ghetto Tech, Big Beat, Electroclash, entre outros.
Em outras palavras, o Electro não estava morto, apenas tinha mudado de nome e endereço. Tudo aquilo que vai, volta, e o tempo é um fator necessário para que o significado das inovações anteriores possa ser compreendido através de uma nova perspectiva. Um possível resgate do estilo ganhou forma no meio da década de 1990. Àquela altura, a compilação “X-Mix - Electro Boogie”, assinada por um DJ britânico, Dave Clarke, trouxe para a década de 90 um pacote de ideias, sensações e texturas musicais através do título “Electro Boogie”, com referência direta à década de 1980. De certa forma, essa coletânea conseguiu manter a chama acesa do estilo em meio à era das calças baggy e, ao mesmo tempo, deu um passo à frente, abrindo espaço para novos núcleos de artistas se expressarem.
Embora esse revival do estilo tenha como pano de fundo a cena noventista de Detroit, impulsionada por artistas como Aux 88, Will Web e por selos como Direct Beat, a narrativa do Electro contemporâneo estaria incompleta sem a cena new school britânica e alemã, sendo que a primeira foi impulsionada por selos como Clear e Evolution e, a segunda, por selos como M-Pire e Dominance Records.
À medida que o estilo foi sendo resgatado na Europa, a Alemanha passou a ser o epicentro do Electro no Continente Europeu, onde o estilo ganhou uma releitura na transição da década de 1990 para o novo milênio. O seu renascimento trouxe à luz artistas do calibre de Knightz Of Bass, Dagobert, Anthony Rother, Funkmaster Ozone e Dynamik Bass System. Assim, após um longo hiato, pioneiros desse estilo nos EUA voltam à ativa: artistas como Newcleus e Egyptian Lover conseguiram gravar uma sequência notável de discos, sem longas interrupções no percurso.
Para uns, o resgate do passado tem a ver com as incertezas sobre o futuro. A música, assim como a moda é, historicamente, uma forma de conexão com outras épocas. Mas nem todos que embarcam nessa viagem são motivados pela nostalgia. Pesquisar o passado nem sempre tem uma verve saudosista; especialmente quando o futuro é desejado com mais intensidade ainda.
A Importância do Electro
É possível viver anos dentro da esfera do Hip-Hop ou da Música Eletrônica – participar de eventos, girar discos em casas noturnas, frequentar feiras de discos, trabalhar na indústria musical ou atuar no editorial de um grande jornal – sem nunca ter ouvido falar de Amos Larkins II, DJ Antron, Rich Cason ou Man Parrish. Afinal, essa cena musical ficou esquecida durante décadas. Sim, ela permanece num baú fundo, repleto de camadas a serem escavadas. Nesse baú existem muitos artistas negligenciados que a opinião crítica do Hip-Hop não reconhece como autores de uma linguagem inventiva talvez por estarem em um mundo à parte do que foi definido como “Golden Era”.
Não há exagero em dizermos que, tanto na seara musical do Hip-Hop quanto na da Música Eletrônica, o Electro é uma das cenas mais férteis (e subestimadas) que conhecemos. Refletir a partir do Hip-Hop pré-sampler, tendo como herança a obra do grupo alemão Kraftwerk, é fundamental para se entender a atmosfera do estilo. E tentar enxergar o Hip-Hop como uma coleção de nomes, de momentos e de possibilidades sonoras, é um exercício de reflexão permanente, que nos leva, de alguma forma, às profundezas de cada cena musical específica.
Enquanto boa parte dos subgêneros do Hip-Hop têm como fonte de inspiração o Jazz, o Soul e o Funk dos anos 70, imortalizados e devidamente reciclados através do uso do sampler, o Electro seguiu por um caminho distinto, criando assim, uma atmosfera singular e uma identidade musical própria. O estilo encarnou, durante um longo tempo, o espírito de criatividade das ruas, cruzando fronteiras e unindo públicos diferentes, combinando imaginação e atitude. Hoje, quase quatro décadas após o seu surgimento, os timbres de Electro continuam frescos e atuais - talvez mais frescos e atuais do que nunca.
Tradução: Mariana Dias - Edição: Priscilla Cavalcante - Ilustrações: Matt Gazzola
Referências
“A Vida de James Brown” Brown, Geoff
“Back In The Days” Shabazz, Jamel
“Born In The Bronx” Kugelberg, Johan
“Electro: The Beat That Won’t Be Beaten” Rambali, Paul
(www.theface.com/archive/electro)
“Electro-Funk – What Did It All Mean” Wilson, Greg
(www.electrofunkroots.co.uk)
“Genre And Hollywood”, Neale, Steave
“Give The Drummer Some: Leslie Ming Of B.T. Express”
(www.redbullmusicacademy.com)
“Hip-Hop Files”, Cooper, Martha
“Le Freak: Autobiografia de Nile Rodgers”
“Quanto Vale o Show?” Botelho, Guilherme - Dissertação de Mestrado – USP
“Rap Attack”, Toop, David
“Rap Records”, Fresh, Freddy
“Sintetizadores à Brasileira”, Pereira, Francisco
“The Record Players: DJ Revolutionaries”, Brewster, Bill; Broughton, Frank
“Ultimate Breaks And Beats: An Oral History”, Covington, Jared
(www.medium.com/cuepoint/ultimate-break-beats-an-oral-history)